digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, setembro 14, 2025

Dicionário: Varinha-mágica

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Significado primeiro: Uma coisa qualquer para qualquer coisa.

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Significado segundo: ferramenta eléctrica de cozinha utilizada para estragar os vegetais da sopa.

sábado, setembro 13, 2025

Dicionário: Cocktail

 

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Significado primeiro: Designação das mixórdias com virtudes organolépticas, cuja elaboração pode incluir artes performativas.

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Significado segundo: acontecimento social em que se comem croquetes e pastelinhos, acompanhados por sumos artificiais e vinhos corriqueiros.

quinta-feira, setembro 11, 2025

Dicionário: Divã

 

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Significado primeiro: Objecto horizontal e almofadado para se regurgitarem as impurezas da mente.

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Significado segundo: Objecto desadequado, embora frequentemente utilizado, para se cair quando se lêem textos literários medíocres, entediantes e desimaginativos.

quarta-feira, setembro 10, 2025

domingo, agosto 31, 2025

O dicionário dos vinte anos

 

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Este não é o dicionário dadaísta nem o não-cachimbo de Magritte. É uma reunião de impressões, com razão e critério, sem qualquer prazo de validade. As entradas vão do óbvio ao desconcertante.

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O infotocopiável fará 20 anos, se eu lá chegar, a 24 de Março de 2026. Ainda que possa não conseguir viver tanto ou me falhe a capacidade, física ou mental, alcançar, para já, quase duas décadas, é um feito raro na blogosfera.

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Quando o comecei disseram-me:

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– Também tens um blogue?

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Vaticinaram que seria breve, desvalorizaram a capacidade mental, porque é pura psicologia, de manter vivo um caderno de pensamento e, neste caso específico, também pictórico. A blogosfera encolheu muitíssimo, mas o infotocopiável resiste. Embora se verifique uma grande redução de novos textos, nunca foi abandonado nem tal me passou pela cabeça.

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O infotocopiável nasceu tosco, impreciso quanto aos temas e, por isso, diverso. Não me envergonho, naturalmente não escondo, porque este género de sítios deve ser verdadeiramente um caderno onde se testam ideias.

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Começou como um local de alguma intimidade, exposição de interesses e pequenos agradecimentos. Evoluiu para um caderno onde a temática do amor foi o local central, posteriormente, quase imediatamente, ligou-se ao estado psicológico – não necessariamente de desabafo, mas pensamento sobre os problemas. Assim, rapidamente se juntaram as questões afectivas e as dores existenciais. De qualquer modo, nunca pretendeu ser, e penso que foi conseguido, uma montra do relicário íntimo.

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Naturalmente, alguns textos cruzam temáticas. Por exemplo, uma composição de amor pode ser, simultaneamente, de cariz psicológico. Por isso, a contabilização apresentada no índice é enganadora. A gaveta mental é a maior em número de textos, seguindo-se a do coração – 2.155 e 1.368, respectivamente.

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Sou autor da maioria dos textos. No entanto, pontualmente publiquei textos escritos a quatro mãos e um doutra pessoa. Paralelamente, alguns textos foram inspirados em trabalhos doutros escritores, podendo até ser quase citações.

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O blogue permitiu-me desmentir factualmente duas professoras que, claramente, me avaliaram muito mal. Enquanto arrumava os papéis dos meus pais, encontrei fichas de avaliação do período do ensino preparatório. Foi-me diagnosticada falta de imaginação nas disciplinas de português e de educação visual. Quem me conhece sabe que imaginação não me falta. Para quem me desconhece refiro que o infotocopiável atingiu 3.884 textos no final de Julho de 2025 – em contas arredondadas dá quase 200 textos por ano. Se forem contabilizadas as publicações de apenas imagem, cuja produção implica concepção, pesquisa e escolha, o total passa para 4.575.

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A imagem é a outra componente do infotocopiável. Naturalmente, o critério das escolhas evoluiu, assim como a exigência da procura do material. Cedo assumi o compromisso de evitar três situações: o óbvio, a ilustração do texto e a legenda da representação. Contudo, conscientemente abri excepções.

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Portanto, o infotocopiável vive da conjugação do texto e da imagem, sem que uma componente se torne impositiva. Todavia, sendo eu escritor e autor dos textos, a literatura é a essência do blogue. Não escolhi as imagens pela beleza ou pelo carácter de documento. O critério foi sempre a dupla leitura. Tenho cuidado semelhante relativamente aos títulos, que nem sempre têm uma sintonia óbvia. Uma vez que sou igualmente artista, apresento algumas das minhas obras.

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Não recorri a uma arte em específico: desenho e pintura, fotografia, vídeo, luz e escultura. Obviamente, a tridimensionalidade é impossível num blogue – pelo menos no estado actual da tecnologia. Assim, objecto, luz e instalação – além das artes performativas – apresentam-se em imagem documental, porque não há outro modo do conseguir.

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A periodização histórica, da imagem, é irrelevante, expectuando quando o conteúdo do texto o exige, da pré-história às produções contemporâneas. Na procura de evitar o óbvio, ilustração e legenda, não me limitei ao gosto pessoal. Esse esforço é comprovável na escolha do grotesco Greco e do piroso Renoir – possivelmente os artistas plásticos que mais abomino.

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Outro aspecto relevante, um compromisso de honra, é a identificação do autor da imagem apresentada. Nem sempre foi possível, devido a limitações na internet. Porém, esforcei-me sempre pelo reconhecimento do parceiro. Procurei não repetir imagens, embora tal tenha acontecido, independentemente de ser inconsciente ou voluntário.

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Os autores culturais não vivem de citações e de reconhecimentos, nem podem nem devem. Todavia, penso que um blogue sem fins lucrativos, sem sequer recolher pequenos donativos, é inofensivo.

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Tenho, ao longo dos anos, recolhido trabalhos dos meus «parceiros». Comecei com pequenas escolhas e evoluí para uma assombrosa pesquisa, em que cada escrita exigia mais e mais pesquisa. Ideia atrás de ideia, juntei milhares de ficheiros. Se fosse um museu estaria ao nível do Louvre, British Museum, Moma, Reina Sofia, Hermitage…

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Há uns anos criei uma secção de publicações apenas de imagem, em que a cor ou o tema se aliaram. Sem razão de conjugação com texto, essa selecção fez-se assentando no meu gosto. Essa gaveta é a excepção.

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O dicionário é um conteúdo diferente. É uma mostra dalgumas das minhas imagens preferidas. Não de todas, o que seria um exagero desnecessário.

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Dada a excepcionalidade da secção «dicionário», uma versão reduzida deste texto estará em todas as publicações. São explicações que devo a quem me procura e lê.

quinta-feira, agosto 21, 2025

Um dia um pintainho

 

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A dor faz parte da vida, mas dispensa-se.

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Nem sempre a lógica tem sentido, mas não há causa sem resultado nem retorno sem partida.

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Desilusão é verter sangue rubríssimo e fechar a alegria no luto.

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Um dia um pintainho pensou ser mais do que um tigre e mandar no mundo.

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Mostrou os seus dentes, eram todos caninos. Alargou a peitaça, rugiu e mandou e ai de.

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Na capoeira mordeu todos os bichos, aleijando sem excepções.

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O tempo manda e a vida obedece-lhe. Um dia outro bicho o irá morder.

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Irá descobrir que as galinhas não têm dentes e que um pintainho não é um tigre, muito menos só com caninos.

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As certezas são para serem quebradas, mas algumas são infinitas e eternas.

quarta-feira, agosto 13, 2025

Concentrado sintético

 


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Funciona ou fica de consolo ou despreza-se. Nos dias tristes medem-se os objectos e o resultado é o que.

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A verdade é uma caixa onde está tudo, do labor equívoco fortuna-má-sorte e do amor, ódio e desamor. Daí se escolhe para se ser pode inversamente.

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Só trabalha o trabalhante e restam os sentimentos-acções.

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Tal as palavras, os dias são por nascerem e para se gastarem. Se depois de ditas, fica, à escolha, a aceitação, a nostalgia e a desordem.

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O passado não se deita fora. Talvezmente nem se arruma. Escondido, não digo que não. Regressa como bumerangue.

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Poucas coisas laboram como as canções, colo da mãe e açoite de alguém.

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A pomada não se me segura a momento, porque é eterno o consolo, mas sem saudade.

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Agoniado, não celebro glória nem infortúnio. Amargura pela minha aflição. Cair para trás com cabeça à frente, queixam-se as costas, porque a alma tocou o fim e já não.

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Sono, lugar onde se é e se está, igual à vigília, umas vezes e outras.

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O que a canção me lembra não importa. O unguento é o seu concentrado sintético.

sexta-feira, agosto 08, 2025

Mulher fantasia, cianómetro de medir o rosa


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Anos sem ver, menos que eternidade, além da teimosia.

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A memória é animal caprichoso, tanto morde, muito beija, inventa-se na verdade e na ilusão.

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Se não é ouro, é prata. A prata quando faz de ouro, é ouro. E é ouro como a verdade.

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Foi pouco, porque poucas e pouco por muito o grande a vontade.

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Pele da cor da pele, forma de feitio exacto, na inexactidão perfeita do corpo que a roupa esconde. Ideal, por isso justo.

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Mais desejados do que lembrados, os lábios gémeos generosos.

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Curvada disse engano, por bem consumado. Modéstia injusta, sem vaidade, mas verdade.

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A boca e o Céu, palavra indizível.

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Rosácea, ogiva e botantes, templo perfeito. Doutro ponto nunca me esqueço, os pináculos.

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Se eu percorresse a nave tombaria pela luz, como um milagre.

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Religiosamente lembro, devoto digo e crédulo desejo, iludido sabendo a verdade.

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Aspiração de êxtase. Oração por atender, esperança por cumprir.

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Se a rosa é perfeita, é azul-celeste o que se diz.

quinta-feira, agosto 07, 2025

Livrocubicularista, palavra que fazia falta

 

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Quando uma palavra é dita não será silenciada. Podem apagá-la, existirá.

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Será flor na Terra, mesmo apenas no Jardim Celeste.

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Livrocubicularista do que quiser, como na biblioteca.

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Uma palavra nasceu, como se faz na cama.

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Diferentes modos

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Dizem nascer no coração e passar para a cabeça. Se assim simplesmente fosse.

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Dizem tocar na alma e borboletar no estômago. Se assim incrivelmente fosse.

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Dizem roubar o fôlego e dar à luz suspiros. Se assim respiratoriamente fosse.

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Não é de amor de que falo.

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Não falam nem dos enjoos que do fígado metastasam à vesícula nem do jiboiar do intestino. Nauseabundo é.

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Não é de amor de que falo. Dum bicho bruto, sem escrúpulos. D’olhos raiados do escuro de cegueira. Dentes lavados com sangue e garras de desesperança.

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Na jaula sem grades nem portas nem janelas nem luz sacia-se lentamente, dolorindo parcimoniamente.

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Há diferentes modos de se morrer: quando se está vivo e quando se está morto.

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Nota 1: documento fotográfico da Polícia de Londres referente a Jack, o Estripador. A vítima foi Mary Jane Kelly.

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Nota 2: a fotografia foi colorida digitalmente.

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Nota 3: muito provavelmente o formato original da fotografia foi alterado.

domingo, julho 27, 2025

Onde pertenço não é aqui

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Passei, desejando passar, enganado passei, querendo ir, tendo passado, julgando o caminho certo, crendo ser no caminho, é passado, agora passo, andando sempre sem ver, olhando parado, retomando o passo, virando, revirando-me e continuando na direcção para onde dizem os pés e, como sempre, não o tino, que não é mais atinado, vou desperto como dormindo desejando o pedestal, crédulo num sonho da infância, mas não alcançarei mais do que a lápide das datas, avisa-me o senso-sincero-insensível, mago do desânimo, conselheiro ignorado, se não for para ser cinza.

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Entardecendo vejo o futuro. Agora querendo aqueles anos de tintura e película, da sala do cinema, do cheiro do teatro, quando comia as letras como se fosse traça, sei dos equívocos e os meus pés estão moídos.

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Aqueles dias, somente novos, os outros arderam como a folha listada onde se começou um poema desinspirado, quase plagiado, de amor ou melancolia.

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Onde errei e quantas vezes, pergunto-me sem interrogação.

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Desejar o regresso é caminhar numa rotunda de becos sem saída e sentidos proibidos, relógio sem ponteiros, conduzindo à inglesa.

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Nem saudade nem nostalgia, valha-me a graça de não ser de tais interesses. Nem imagino se. Porém.

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Não peço o regresso, mas a seta certeira e a quantidade de metros para chegar. Pergunto-me e é a cabeça quem responde.

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– Por que errei?

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– Porque tenho os pés mais feios do mundo.

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Olhando-me ao espelho percebo que estou quebrado e leio-percebo-constato as décadas de azar.

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As vitórias foram derrotas. Não sei se me impuseram à verdade ou se a mentira iludiu por mim. Tinha tanto brilho e ouro.

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Abro a mesa e liberto uma toalha de algodão, vincada pelas dobras da guarda prolongada, baixo as janelas, acalmo a luz com uma vela, jogo as setenta-e-oito cartas e pergunto-lhes e não leio o que entendo.

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Acaricio a bola dos meus estilhaços, a minha esfera só se transcende com o passado, ansioso leio as borras do chá na caneca e decifro os resíduos do café na chávena – as tais rugas e sulcos do pano naftalino, irregularidades de encantar, não desviam previsões nem calam engodos.

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Não me assusto com fantasmas, ilumino-os com preces, explico o momento e indico o caminho. Contudo.

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Não comigo. Alvoroço-me, sou fantasma de mim, não me desencosto com pau de incenso aceso, malva queimada, cânfora no bolso da camisa e velas na capela. Tanto quanto creolina e lixívia.

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Se há labirinto sem saída, é. Não tenho portas abertas e janelas fechadas nem o contrário, em negrum só paredes-cantos e ar sem luz.

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Como sempre, a cabeça responde à cabeça, porque sabe a verdade, da ilusão ao desgosto, assim acredita ou diz que.

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– Onde errei?

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– Em quase tudo.

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Por que quero conhecer o futuro quando sei o passado, se a minha curiosidade não tem apetite.

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Tenho-me em excesso e ainda me sobram erros e ilusões, doenças crónicas.

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Tão desviado que caído, por tão caído desviei-me, tão enganado que tão derrotado, tão derrotado que caído, constato a minha derrota no sucesso dos imerecedores. Lambo as lágrimas da inveja e do desrespeito que me dão sobradamente, tantas que.

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Pés tão feios só vão erradamente – diz a cabeça.

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Pés feios andam para o erro. Não há ajuda que ajude pés tão feios. 

sábado, julho 26, 2025

E entardece

 


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É onde estou, parado. Ao retrospectivar, não me rodando e sem olho de ver para trás, mas sei o que está, aqueles anos percebo tardiamente o sítio onde pertenço.

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Começa a obscurecer e sem saber o que fazer com a vida errada. Não há como inverter, não há terra, água ou céu para. Nem as palavras se corrigem no ar nem os passos se acertam com sapatos errados.

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Há um ramalhete de músicas, álbuns onde as imagens são ausentes e presentes, viagens incríveis-banais, caixas com as certezas juvenis, escuro de bola-espelhada e strobe light, cofre de esconder o álcool censurado e árvore-natal de miúdas-beijos na minha cabeça.

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Quarto está erradamente arrumado, a chave está na fechadura da porta aberta e não vou. Sei o miolo e não sou sôfrego do que tive.

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Chego a pensar que me faltam saudade e nostalgia para ter razão para chorar e alcançar os direitos para viver e morrer. Em vez disso, sobrevivo.

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A sobrevivência é o tédio da derrota. Interpretar não muda, sejam as perspectivas íngreme ou serena.

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Esses dias são noutra vida, como são os das outras vidas.

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Só obrigado voltaria, mas sei onde pertenço e não é aqui.

terça-feira, junho 10, 2025

Já que perguntas

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 Já que perguntas.

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Digo-te que estou triste, mas sobreviverei. Fico triste, porque é triste ficar na esperança de ir. Fico triste se não me dizem. Fico triste. Triste.

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Tenho uma porta, no sítio onde me encontram. O resto são paredes, janelas e ombreiras, quem as vê, se quiser, pode acreditar ver-me a caminhar, fugir ou apanhar fruta. A quase todos, não importo.

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A porta é clara em parede escura ou ao contrário. A maçaneta parece um maçaneta, a fechadura não tem chave e se espreitarem não verão. É simples rodar a maceta e empurrar para abrir, mas não querem. Fico triste, dói.

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Acreditam que não vou, por isso não estarei, nem se interessam, sabem nada, mas não querem saber.

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Dói. Dói. Até o sangue dói. Não querem saber antes, não querem saber depois.

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Parece que o sangue se transforma em lágrimas e as gotas salgadas correm nas veias. Dói.

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Consola-me ter o seu desprezo para lhes fechar a porta, para não verem onde estou, mas não irão.

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Invisível para não lhes dar espanto. Se quisessem saber.

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Vou onde me chamam e me querem bem. Gostaria que fosse a Terra toda e todos os espíritos da carne e do éter. Mas não, e dói.

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Onde estou, não me vêem nem verão, porque lhes fechei a porta, mesmo que não o saibam nem queiram. Ainda assim, fico triste. Dói.

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Dói. Dói. Onde estou não me verão chorar.

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Se virem? Não vêem nem verão, porque não querem saber.

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Estou noutra rua, doutra cidade, a preto e branco, janota ou mendigo, invisível noutro século.

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Porém, dói. Quando me dói fico triste, fico triste e dói.

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De qualquer forma, ainda bem que perguntaste.

segunda-feira, junho 09, 2025

Às vezes os meus olhos não são castanhos

 

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O meu olhar é triste como o da minha mãe como o da minha avó e como parentes antigos.

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É a minha meia-idade, que não me envergonha nem amedronta, mesmo sem um descapotável encarnado, rede de apanhar miúdas impressionáveis, é sonolenta, interessante como a hora do almoço de balconista ou escriturário.

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Tenho a pele presa por si mesma, porque o Sol impõe. Não posso fazer nada sem viver à sombra, como vivo.

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A água morna torna-a areosa. Não posso fazer nada além de poupar a higiene e não vou cheirar mal das axilas.

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Dos meus destroços, da vida quotidiana e universal, o lixo vai para o aterro e o resto vai para reciclar.

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Os poemas sem poesia valem como os resíduos indiferenciados, não são recicláveis e, pensando a correr, não são reutilizáveis.

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Há poetas que juntam palavras como se fossem poemas e, mesmo sem poesia, têm palmas e até ganham prémios.

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Desejo que os meus poemas sejam lidos, traduzidos, estudados, premiados e que, acima de todos os tudos, sejam poesia.

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Não leiam mais do que escrevi nem diferentemente ao posto. Este texto não é um poema, é um conjunto de pequenos parágrafos.

domingo, junho 08, 2025

Digam o que disserem

 

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Então, disse-me:

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– O céu azul é lindo, não é?

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– Os cientistas dizem, li não sei aonde, que o céu não é azul.

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– Então, qual é a sua cor?

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– Não sei… talvez seja negro, tal como se vê à noite.

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– Deve ser a luz do Sol que.

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– Não sei. Os cientistas dizem coisas que não se entendem.

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– Êee… como assim? Quais? O quê?

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– Todos eles, de todas as ciências. Nunca têm certezas. Se as tiverem, outros desmentem-nos e, mais tarde ou mais cedo, os cépticos e os invejosos afinal não tinham razão… ou só em parte.

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– …

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– Para que quero as ciências? Não as entendo… só algumas pessoas… os cientistas, alguns outros sábios e gente muito inteligente e com grande memória. Há também os mentirosos, mas, se eu não souber, não perceberei que me enganam… como não me interessa, é-me indiferente o falso conhecimento. Iludem-me, mas não me roubam nada.

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– A ciência é importante.

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– Para quê? Adianta-lhe saber que a Terra é redonda? Poder calcular a raiz quadrada ajuda-o a descansar? E a fórmula química da glucose, que nunca me esqueci?…

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– …

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– Voando sobre uma esfera, a distância mais curta entre dois pontos não é através da recta. Quero ir daqui para ali e o caminho não me importa, desde que chegue o mais rapidamente possível.

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– Não lhe importam como vivem as plantas ou como actuam as vacinas?... Sem ciência não há tecnologia…

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– Interessam-me a couve no prato e as rosas no jardim. Quero as vacinas para não ficar doente e um comprimido para as dores…

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– Essas coisas não são importantes?!…

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– São coisas importantes, mas desinteressa-me o seu funcionamento. Para que quero a ciência? Não a entendo nem vou fazer uma pausa para aprender, porque não serei cientista e ser sábio ocupa o tempo em que me delicio a olhar a chuva, a afagar um gato ou a repousar em água morna…

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– …

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– Referiu-me as proezas… as ciências e a tecnologias. Quem é mais importante, o astrofísico que não me dá nada e me fala do que não entendo ou o padeiro que faz bom pão, mas desconhece química, física e mecânica?

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– Êee… âaa…

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– …

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– É um homem de letras, não de números.

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– É exactamente o mesmo! Saber o que é o predicativo do sujeito importa para dizer que se está molhado da chuva?

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– O conhecimento liberta…

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– O conhecimento científico gera desconhecimento. Por que hei-de andar numa estrada que cresce a cada passo? Se a ignorância é escuridão e apenas ver as sombras projectadas é, uma espécie, servidão, saber que saber significa saber menos do que se julgava saber… Saber de ciência é uma prisão doentia. E saber de letras não faz, do sábio, um poeta.

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– …

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– Não é possível saber tudo sobre uma coisa, tal como não é possível saber um pouco, que impressiona por ser muito, acerca de tudo. Se não posso saber tudo nem conhecer muitos bocadinhos de tudo, para que hei-de saber só uma parte ou ter muitas insignificâncias na cabeça? Por que escolher esta ciência e não outra? Porquê uma parte duma ciência e não outra parte? E, depois, como lhe disse, os cientistas duvidam, divergem, desmentem… prefiro as certezas, o resto – seja muito ou pouco, não me importa – é para os cientistas e para os doutores das letras.

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– …

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– …

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– O céu azul é lindo!

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– O azul é lindo, mesmo quando não é céu. É felicidade… não importa o que é, nada importa além de azul.

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– Digam o que disserem, os cientistas.

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– O dinheiro é indiferente para o pobre que não precisa mais do que tem.

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– Êee…

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– Uma limusina para ir ao jardim dar pão seco aos pombos? Uma cama com cinco metros de largura, quando o corpo tem menos dum de ombro ao ombro? Relógio de ouro que dá as horas como um de plástico e que se atrasa menos? Talheres de prata não tornam a carne mais macia nem a fruta mais doce. Uma gravata de seda sobre a camisa toca maciamente na pele como uma de poliéster.

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– Um apartamento com uma vista deslumbrante custa muito dinheiro…

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– Não espera que lhe diga que os ricos roubam os pobres e ficam egoisticamente com o belo. Não o direi… a abomino a beleza do trabalho esforçado, como glorificam os neorrealistas… nem disse que sou pobre nem que quero ser… nem que negligencio o belo. Disse do pobre que não quer mais do que tem, tal como estou satisfeito com a ignorância científica. Esse, da abastança monetária, é outro assunto.

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– O céu azul é lindo, não é?...

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– Digam o que disserem os cientistas.

A beleza do

 


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O neorrealismo é feio, não por elogiar quem vive em muito esforço nem por engrandecer o trabalho de suor. Mostrar a miséria como miséria é feiura concentrada e sem diluição possível.

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Revelar a pobreza é denunciar injustiças e não é, quase sempre, arte. Não há muitas imagens das lágrimas de pobreza e do suor laboral que tenham a virtude da beleza.

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O feio é feio tal como é errado o quadrado de linhas tortas, o qual se elogia por ter nascido da inesclarecida intuição matemática dum poeta.

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Os desgostos da transpiração oficiosa e a melancolia do pouco da troca não são de envergonhar. Ainda assim, a dignidade é maior se a crueza for desbastada do óbvio.

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A maioria rende-se à expressão, do rosto e do corpo, pensando revelar uma verdade invisível e, por isso, alcançar uma graciosidade na dor. Há quem conte tudo mostrando pouco.

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Quase todos só falam da matéria, alguns mostram a carne a tocar na alma.

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Nota: tive de escrever este texto por causa da força desta imagem. Depois descobri que já a mostrara. Contudo, a força da imagem justifica voltar a mostrá-la.